Mansos

A palavra πραεῖς (manso) aparece 4 vezes em todo o Novo Testamento grego. [1] De acordo com a Chave Lingüística do Novo Testamento Grego (pg.9, 1995) essa palavra pode significar meigo, manso. “A atitude humilde e mansa que se expressa na submissão às ofensas, livre de malícia e de desejo da vingança”. A palavra também pode ser traduzida por “amistoso(a)” e pode se referir às pessoas que renunciam a impor-se aos demais de modo inescrupuloso e violento.[2]

O adjetivo foi utilizado no Novo Testamento para se referir:

  1. A uma qualidade dos discípulos de Jesus, dos bem-aventurados que usam de paciência e longanimidade, mesmo quando sofrem injustamente ou são acusados por algum tipo de pecado cometido (Mt 5.5);
  2. A uma das marcas da pessoa de Cristo. Jesus era manso e humilde de coração. Aprender de Jesus é viver como Jesus viveu. (Mt 11.29). Ele não se apegou ao direito de ser Deus, mas se esvaziou, se humilhou, serviu, obedeceu, morreu!
  3. A Jesus na sua entrada triunfal em Jerusalém. O grande Rei veio em humildade e mansidão. Aquele que carregaria os fardos de todos é conduzido por um jumentinho, cria de um animal de carga (Mt 21.5)
  4. Ao traje interior de uma mulher piedosa. A mulher cristã deve se vestir de uma atitude humilde e gentil que se expressa numa submissão paciente (v.Mt 5.5; 2Co 10.1; Gl 5.23)

O substantivo πραυτης é a palavra que Paulo usa na lista acerca do Fruto do Espírito (Gl 5.23). A palavra também aparece em outras ocorrências como 1Co 4.21; 2Co 10.1; Gl 6.1; Ef 4.2; Cl 3.12; 2Tm 2.25; Tt 3.2; Tg 1.21; 3.13; 1Pe 3.15.

De acordo com Willian Barclay (pg.172, 2000), essa palavra era utilizada no grego clássico a respeito dos objetos, como suave. Por exemplo, uma brisa ou uma voz suave. Com respeito a pessoas significava “brando” ou “gracioso”. Era uma palavra carinhosa, uma palavra para bondade e graciosidade.

Aristóteles considerava essa palavra como um meio termo entre a ira em excesso e a falta de ira. Para ele o homem que é manso (praus) é aquele que sempre fica irado na hora certa, e nunca na hora errada. Isso ilumina um pouco a questão. Praus era usada para o animal que foi amansado. Por exemplo. O cavalo que antes era selvagem mas que agora se tornou obediente ao freio e às rédeas é praus (manso). Pedro e João.

A grande característica de uma pessoa mansa é que ela está sob perfeito controle. Não é suavidade sem caráter, de uma afeição sentimental, de uma quietude passiva. É uma força que está sob controle. Sabemos que esse controle não vem de nós mesmos, mas da ação do Espírito em nossas vidas. Com isso percebemos claramente que mansidão não se trata de alguma qualidade natural, visto que espera-se que todos os crentes sejam assim e não somente alguns. Não é equivalente a indolência e à complacência. Não é uma atitude de paz a qualquer preço, pois o homem “manso é alguém que acredita e defende com tal empenho a verdade que se dispões até a morrer por ela, se for necessário. Os mártires foram pessoas mansas, mas jamais foram débeis. Foram homens fortes, e, contudo, mansos. Que Deus nos livre de alguma vez confundirmos essa nobre qualidade, uma das mais nobres dentre todas as virtudes, com algo meramente animal, físico ou natural”[3]

Exemplos positivos e negativos na Bíblia:

Exemplo negativo: Alguns crentes da igreja de Corinto e de Filipos

·         Carnalidade demonstrada na inveja e ciúme, desejo de se sobressair sobre os demais (Corinto)

·         Busca por posições e desejos egoístas (Filipenses)

Exemplos positivos: Moisés e Jesus

Na Bíblia nós temos dois exemplos bem marcantes, um no AT (Antigo Testamento) e outro no NT (Novo Testamento). No AT nós temos Moisés! Nm 12.3 nos diz que Moisés era o homem mais manso na terra, mas esse mesmo Moisés era um homem que podia agir com decisão e arder em ira quando surgia a ocasião para tal comportamento. No NT nós temos Jesus! Ele declara que é manso, mas ao mesmo tempo demonstra ira ao ver pessoas usando a Casa de Deus para ganhar dinheiro e explorar o povo.

D.Martyn Lloyde-Jones diz que essa descrição do cristão é totalmente contrária a tudo quanto o homem natural pensa. A humanidade, diz ele, “ pensa em termos de força, de poderio, de habilidades, de auto segurança e de agressividade. Essa é a ideia que este mundo faz de conquista e predomínio. Quanto mais uma pessoa se impõe e se expressa, quanto mais se organiza e manifesta o seu poderio e as suas habilidades, tanto mais perto se acha do sucesso e do progresso”, mas a declaração de Jesus diz: os mansos, e só eles, herdarão a terra.

Somos um povo diferente. O mundo não é capaz de nos entender. “Se você e eu, nesse sentido primário, não constituímos problemas e enigmas para os incrédulos que se movem ao nosso redor, então isso pode revelar-nos muita coisa sobre a autenticidade de nossa profissão de fé cristã”[4]

É possível perceber uma relação entre as bem-aventuranças. A primeira nos recomenda a tomarmos consciência da nossa debilidade e falta de aptidão. Quando uma pessoa enfrenta a Deus, os dez mandamentos, a lei moral, e igualmente, o Sermão do Monte e a vida do Senhor Jesus e sente que através de suas forças, é capaz de fazer a vontade de Deus, nem ao menos começou a ser crente, mas quando reconhece sua fragilidade e seu pecado, até nas suas melhores ações, pensamentos e desejos, tal pessoa é conduzida a segunda bem-aventurança e lamenta-se chorando: “desventurado homem que sou”.

A terceira bem-aventurança muda o foco do eu para o próximo. Deixo de avaliar a mim mesmo e passo a ser avaliado pelos outros, julgado pelos outros. “Todos nós preferimos condenar-nos a nós mesmos, e não que outras pessoas nos condenem”[5]. Instintivamente nos sentimos ressentidos. Como reagir diante dessas coisas?

Em primeiro lugar preciso ter uma atitude correta comigo mesmo, pois isso se refletirá na minha conduta em relação ao meu próximo. “Se eu já percebi o que realmente sou, em termos de humildade de espírito e de atitude lamentosa, em vista de minha pecaminosidade, então sou levado a ver que é necessário que em mim não se manifeste o orgulho”.[6]

Em segundo lugar preciso me anular completamente, como se não tivesse direitos e nem merecimentos seja no que for. Tal indivíduo já percebeu que ninguém poderá causar-lhe dano. John Bunyan expressou admiravelmente bem a situação, quando escreveu: “Aquele que já está caído, não precisa temer a queda”. Quando alguém vê verdadeiramente a si mesmo, sabe que ninguém pode dizer a seu respeito algo que seja exageradamente mau. Não precisa preocupar-se com o que outros homens digam ou façam; porque sabe que merece tudo isso, e mais ainda. Na verdade o manso fica admirado de que Deus e os homens possam pensar tão bem dele quanto pensam.

Em terceiro lugar preciso deixar tudo – nós mesmos, nossos direitos, a nossa causa, o nosso futuro todo – nas mãos de Deus, e, especialmente quando sinto que estou sofrendo injustamente. “A mim me pertence a vingança; eu retribuirei diz o Senhor” (Rm 12.19). A nós mesmos nada compete fazer. Deixemos com Deus toda a nossa vida em atitude de paz na mente e no coração.

Qual a bênção que eles recebem?

“herdarão a terra”. O que isso quer dizer? De forma bem resumida quer dizer que já somos herdeiros da terra, na vida presente, pois o homem que é realmente manso é o homem que sempre vive satisfeito, é o homem que se sente contente. Ele não vive preocupado. “... tudo é vosso: seja Paulo, seja Apolo, seja Cefas, seja o mundo, seja a vida, seja a morte, sejam as cousas presentes, sejam as futuras, tudo é vosso, e vós de Cristo, e Cristo de Deus” (1Co 3.21-23). Mas também há um aspecto futurístico. Os crentes estão destinados a julgar o mundo (1Co 6.2), são filhos de Deus e herdeiros de Deus e coerdeiros com Deus. Em outras palavras, haveremos de herdar a terra e de reinarmos com Cristo (2Tm 2.12). A terra pode até ser dos espertos, mas o crente possuirá a nova terra e o céu.

Mansidão, é a força que está sob controle, mas é errado dizer que o homem que é manso tem perfeito autocontrole, porque somente Deus pode lhe dar esse domínio total. A nossa oração deve ser no sentido de Deus nos tornar praus (mansos) e se temos de fato o Espírito Santo, então, não temos qualquer desculpa se não sermos mansos.

Que implicações podemos tirar para a família cristã? Faço minhas palavras finais as palavras do Dr.Martyn Lloyde-Jones:

·         Precisamos encarar de frente o Sermão do Monte, no que concerne à declaração dessa necessidade de sermos mansos;

·         Precisamos considerar os exemplos que temos, principalmente o do Senhor Jesus;

·         Precisamos nos humilhar e confessarmos a nossa vergonha incluindo não somente a pequenez da nossa estatura espiritual, mas também a nossa completa imperfeição;

·         Precisamos por um ponto final em nosso próprio “eu” exigente, o que é a causa de todas as nossas dificuldades, a fim de que Aquele que nos adquiriu a um preço tão elevado possa vir e possuir-nos por inteiro.



[1] De acordo com a Concordância Fiel do NT Grego e com o Strongs (The Word)

[2] Nova Chave Lingüística do Novo Testamento Grego, pg. 63.

[3] D.Martyn Lloyde-Jones, pg.61.

[4] D.Martyn Lloyde-Jones, pg.57.

[5] Ibid, pg.59

[6] Ibid, pg.62